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domingo, 18 de maio de 2014

Yue Jaded - Memórias 01

Aquele não era um dos meus lugares favoritos, ainda assim eu gostava de estar lá e até me sentia confortável.
O cheiro dos livros misturados ao silêncio das pessoas ao redor... As velas e lamparinas quebrando a escuridão da sala sem janelas... Tudo isso fazia com que eu sentisse como se aquele lugar fosse um mundo a parte. Talvez, quem sabe, a ante-sala para diversos outros mundos e realidades que se escondiam em cada um dos livros.
Esta era a biblioteca e dentro dela eu viajei.
Estava ali sentado com uma enorme pilha de livros diante de mim. Estavam espalhados sobre a mesa, abertos em diferentes páginas que eu já nem sequer olhava mais. A concentração para continuar minha pesquisa desaparecera há pelo menos uma hora atrás e desde então não havia voltado.
Olhava ao redor e via uma série de pessoas em roupas de mangas largas e caídas. Vestes espaçosamente confortáveis, mas nem por isso menos estranhas.
...Bem... Mesmo que eu achasse as roupas estranhas, na verdade o estranho era eu. O único ali que não era aluno... O único de vestes claras naquele oceano de panos escuros.
Afastei os livros para o lado, cruzei meus braços sobre a mesa e a seguir deitei minha cabeça. Fiquei olhando fixamente para uma parede a qual tinha certeza absoluta que me separava do mundo externo. Havia neve lá fora caindo e flocos leves e brancos... E eu não precisava de janelas pra saber disso. Eu podia sentir.
Suspirei profundamente...
Meus olhos foram lentamente se fechando... Eu fui começando a adormecer...

- Com licença. - ouvi chamar ao meu lado.

A unica parte de meu corpo que se moveu foram meus olhos. Nem mesmo minha bochecha desgrudou um milimetro sequer dos meus braços quentes enquanto vislumbrava aquela jovem garota parada ao lado da minha mesa com uma porção de livros nos braços.
Seus cabelos castanhos e lisos desciam até pouco além dos ombros e seus olhos verdes reluziam com as luzes das velas sobre a mesa. Sua pele era branca, com algumas pintinhas espalhadas pelo rosto. Havia um contraste entre seus lábios rosados e suas bochechas avermelhadas.
Ela sorriu.

- As outras mesas estão ocupadas. Eu poderia me sentar aqui com você? Digo... A sua é a unica que ainda tem algum espaço.

Acenei que sim com a cabeça, mas ainda sem descolar minha bochecha de meus braços. Eu estava realmente confortável daquele jeito... Provavelmente a cena foi engraçada, pois ela sorriu novamente.
Ou talvez só estivesse feliz por ter encontrado um lugar para despejar aquele monte de livros e se acomodar.
Ela sentou na cadeira a minha frente, abriu uma fresta entra entre os livros que nos separavam e estendeu a mão.

- Meu nome é Danielle. Muito prazer....

"Poxa Danielle... Minha posição confortável..." - Pensei comigo. Mas ainda assim descruzei os braços, apoiei o queixo na mesa e fitando-a nos olhos a cumprimentei preguiçosamente.
Valeu a pena pelos olhos...

- Yue... - Balbuciei. - Yue... "O Estranho".
- Muito prazer, senhor estranho. - falou enquanto apertava minha mão. Fiquei grato por ela ter mãos quentes. - O que está estudando?
- Princípios da Alta Magia... Elementos Astrais... Fundamentos do Equilíbrio... E... - fiz uma pausa, apenas para aumentar o drama. - Também peguei esse livro de culinária.
- Culinária?
- ...Tem ilustrações muito realistas e apetitosas.

Dessa vez eu tive certeza que a risada era devido minha piada.

- Corajoso você. São livros muito avançados... Exceto pela culinária, eu diria.
- Como assim? Não subestime a culinária... Para mim é o pior de todos.

Desde então nos tornamos amigos.
Ela me contou a história de sua vida. Falou a respeito de sua cidade natal, seus amigos de infância, sua família, sonhos e desejos. Em troca perguntava-me a respeito de tudo aquilo que tinha curiosidade sobre o mundo lá fora e a meu respeito.
Não que eu respondesse tudo... Mas não posso dizer que era fácil dissimular e me esquivar de certas perguntas.

- Você está mudando de assunto novamente! - ela dizia. - Afinal, por que você que ser tão misterioso?
- Isso também é um mistério.

Logo a primavera chegou e eu tinha de partir. Os jardins já estavam coloridos e repletos de animais quando fui encontrar Danielle na sala de músicas para me despedir. Do lado de fora, no corredor, eu já podia ouvir o som de um piano e as risadas de Dani.
Bati duas vezes na porta e entrei. Uma amiga de Danielle estava tocando o piano e não se deixou interromper quando me viu entrar. Minha bela amiga no entanto estava sentada na janela que dava para as fontes do jardim com uma perna balançando para fora e assim que me viu arremessou o livro que tinha nas mãos.
Agarrei o livro no ar com facilidade usando apenas uma das mãos. Puro reflexo.
Desde que Dani descobriu esta minha habilidade não havia parou mais de arremessar coisas em mim, assim como havia feito naquele exato momento.
No entanto eu estava encantado com a cena.
A luz do sol da manhã invadia o comodo e a banhava de forma angelical. A aura dourada refletida em seus olhos e cabelos misturava-se com a música e eu não tive qualquer opção a não ser congelar no lugar e observar.

- Yue! - ela chamou. - Yuuuueeeeee!!!

A música já havia acabado e foi sua voz que me trouxe de volta para a realidade.
...Como raios aquele livro havia parado na minha mão?

- Vai ficar aí parado até quando? - ela perguntou enquanto fazia uma careta simpática.

- Eu estava apenas observando a paisagem.
- A paisagem é?
- Sim. Bela paisagem...
- Como você é bobo! - ela riu , se aproximou e me puxou pela mão. - Deixe-me lhe apresentar minha amiga. Yue, esta é Aria. Aria, esta pessoa da qual lhe falei... Yue Jaded.

Ela nos apresentou e notei no fundo dos olhos de Aria uma estranha familiaridade. Podia jurar que a conhecia de algum lugar.

- Yue? Então você é o famoso Yue Jaded? Ouvi muita coisa a seu respeito. - ela olhou para Dani nesse momento. - E posso garantir que nada do que ouvi é mentira.
- Você falou pra ela de como eu estou sempre atrasado, não é? - falei olhando para Dani.

Aria riu e Dani agarrou seu braço enquanto me olhava. Estava notando meus trajes, diferentes naquele dia devido a viajem que deveria fazer.

- Não, nada disso... - Aria continuou. - Ela comentou algo a respeito de "estranho", mas parece que sua adorável amiga prefere ignorar seus defeitos e só ver qualidades. Mas posso dizer duas coisas com certeza absoluta! Uma delas é que estou com ciumes! Vocês ficam tanto tempo juntos que ela nem lembra mais de mim!
- Aaah tá bom! - disse Danielle, apertando o braço da amiga e fazendo careta antes de lhe dar um beijo na bochecha.

Eu ri, mas sabia que aquelas palavras eram sinceras.

- E qual a segunda coisa?
- Você realmente está atrasado.

Coisa estranha de se ouvir de uma pessoa que mal conhece, ainda em um tom mais sério do que o da ocasião.
Durantes poucos segundos tentei compreender aquilo tudo. A sensação de já conhecer Aria... A maneira como ela falava comigo... Ainda assim fazia um esforço para não deixar transparecer minha curiosidade. Então apenas respondi.

- Tem toda razão.

Danielle pediu a Aria que tocasse mais uma música no piano e então, oferecendo sua mão me convidou para dançar.
...Como recusar?

- Esta não parece ser mais uma de suas costumeiras visitas. - ela começou falando. - Tem algo para contar?
- Na verdade... Bem... - senti um peso no coração e alguma coisa dentro de mim me fazia querer ficar. - Eu vim me despedir, Dani.
- Eu imaginei... - ela deu um sorriso triste e forçado, mas baixou a cabeça depois. - Já imaginava que logo isto iria acontecer. Quando você volta?
- Não sei dizer... Pra ser sincero é possível que não volte.
- E ao menos uma vez poderia me revelar um de seus segredos e contar para onde vai?
- Apenas se prometer não me seguir...

Ela permaneceu de cabeça baixa durante algum tempo sem dar qualquer resposta. Continuávamos dançando e eu pude sentir como ela estava confusa. Eu mesmo estava confuso naquele momento. Havia um oceano de duvidas e pensamentos que corriam para todos os lados num fluxo descompassado.

- Não sei o que dizer... - ela falou por fim. Ergue os olhos ao encontro dos meus e isto me preencheu com um profundo frio interior. - Talvez... Boa sorte?
- Isto é você prometendo? - arrisquei e ela simplesmente acenou que sim. - Então... Vou a Artafria, para a fortaleza de Artafria.

Ela parou no lugar e no mesmo instante se afastou de mim. Aria, notando a mudança do clima entre nós, também parou de tocar e passou a nos olhar com curiosidade.

- Por que? Por que você vai pra lá? - Danielle se afastou mais um passo como se visse a morte diante de si. Estava aterrorizada.
- Tem alguém que eu preciso muito encontrar... E algo que eu não posso deixar de fazer.
- Você sabe a respeito das histórias daquele lugar, não sabe? Sabe a respeito da besta? E do grupo enviado por Seriah? Todos que nunca retornaram?

Ela tinha razão. Havia milhões de motivos pelos quais eu não deveria partir. Mas por mais razões que ela pudesse listar, me peguei pensando que o único que realmente importava para mim era ela mesma.
Procurei prestar atenção a tudo o que ela dizia, mas em algum momento eu só consegui pensar que se ela pedisse... Se ela simplesmente pedisse...

- Yue! Você está me ouvindo? Do que é que você está rindo, Yue?!
- Eu estou... Apenas sorrindo.

De repente eu havia percebido. Eu havia entendido o que sentia.
Agora, mais do que nunca, eu tinha que ir.

- Pode ser um pouco de presunção minha, mas não pretendo morrer por lá, Dani. Eu sou Yue Jaded...
- Eu não entendo você. Achava que entendia até esse exato momento, mas... - ela se afastou e sentou na borda interna da janela. Baixou a cabeça e desviou seu olhar para fora. Não soube dizer se estava triste, irritada ou ambas as coisas.

Aria se aproximou de mim e olhou em meus olhos com um ar profundamente interrogativo expresso em seu rosto.

- Você não parece ser a mais ajuizada das pessoas que um dia conheci, mas isto não quer dizer que você não tenha algo ai dentro desta cabeça...
- Cuide bem dela.

Saí dá sala e deixei meu presente junto ao livro que ela havia arremessado em mim.
Me coloquei na estrada dentro de uma carruagem rumo ao mar. Pensava em tudo o que me havia sido dito. No grupo enviado por Seriah. No próprio Seriah e em como as coisas eram quando estava perto dele.
Quando a tarde do terceiro dia de viagem chegou  eu estava olhando através da janela da carruagem. Via as primeiras estrelas refletidas nas escuras águas do oceano para o qual eu seguia.
Muita gente não sabe, mas o vento carrega mensagens de todo canto do mundo.
...Eu sentia o vento... E ouvia suas mensagens.

O vento daquela noite me contava sobre Danielle.

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